Ela gosta de pérolas.

Não se esqueceu do que não foi, aquela rapariguinha insignificante que agora disfarça entre as mulheres. Pensa, por vezes, que ele também não esqueceu - melhor, que ele se lembrou de pensar no que não foi.

O sorriso carregado de ternura parva e irreal que se lhe espelha no rosto quando pensa nisso reflecte e brilha no grosso vidro do comboio enquanto ela analisa individualmente cada gota de chuva, ou de orvalho, nele presa do lado de fora, como uma conta de um fio - uma pérola do céu. Ela gosta de pérolas.

O dele talvez seja igualmente parvo - o sorriso.

Ela recorda os que lhe conhece. Ainda são alguns - abana a cabeça admirada.
Fantástico.
Eram todos fantásticos. Como nunca percebera isso antes?!

O problema deles foi pensaram, ambos, que tinham tempo.

Hoje, sem apreensão de incerteza ou teimosia de finca-pé infantil tão próprio deles mesmos, relembram, a quilómetros de distância, o que não foi.
Relembram o que foi também.
Sem pressas, desta vez.
Desta vez com calma, a saborear os instantes, passando-os em câmara lenta, rebobinando alguns, sorrindo com todos.

Ela pensa para si que não haverá desilusão na vida que lhe retire aquilo que não foi. 
E o que não foi soube-lhe bem.
Era uma pérola. Ela gosta de pérolas.
Sorri com a possibilidade de, pelo menos uma vez na vida, ele concorde com ela - mesmo que a quilómetros de distância e a meses, talvez anos, de separação.
B.B.



"Gostava muito dele
mas nunca lhe disse isso
porque a minha criada tinha-me avisado
se gostar de um rapaz
nunca lhe diga que gosta dele
se diz
ele faz pouco de si para sempre
os rapazes são maus
eu não era bela
nem sabia quem tinha pintado Os Pestíferos de Jaffa
resolvi assim escrever-lhe cartas anónimas
escrevia o rascunho num caderno pautado
não sei hoje o que escrevia
mas sei que nunca escrevi
gosto muito de ti
e depois pedia a uma rapariga muito bonita
que passasse as cartas a limpo
eu acreditava que tem uns cabelos
assim loiros e a pele fina
devia ter uma letra muito melhor que a minha
agora que conto isto
vejo que deixo muitas coisas de fora
por exemplo que o meu primeiro amor
não foi este, mas Paulo
o irmão da rapariga bonita."

Adília Lopes 
in «Quem Quer Casar com a Poetisa?»


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