Corte.


Deixava-se passar como quem não se importa, ia-se com a inércia de um vento inexistente e nem forças tinha para fechar os olhos. Ia perder o segundo de luz perfeito.
Mas isso não importa.

Sentou-se na sala. Cabelo molhado pelo meio das costas. Não era o comprimento correcto para um homem de fato e gravata.
Cortou-lhe o cabelo à luz da manhã, com uma tesoura rudimentar, pouco afiada.
Fez-lo devagar,
Ao som da resistência do cabelo contra a lamina descuidadamente manuseada e o som calmo e pesado da sua respiração.

Foi a primeira vez que fechou os olhos, aquele homem que tirou a gravata e a cortou juntamente com o resto. Talvez até se tenha despido, sentado de braços caídos ao longo do tronco e mãos abertas.
Deixou-se passar, mesmo sem vento, numa sala oval de vidro com vista para lado nenhum. Sentiu frio.

Perdeu o segundo de luz perfeito. Soube disso por detrás das pálpebras e sorriu. Gostou de perder, já não importava.

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Ela também perdeu, embrenhada na actividade a que acaba de se apresentar. Concentrada a segurar os fios de cabelo entre os dedos enquanto trincava a língua para encontrar o equilíbrio  Procurou esquecer-se do sujeito no meio daquela sala a meia luz, numa cadeira frágil e barulhenta de madeira desgastada pelos anos.

Quando terminasse podia voltar para o mundo. Deixar-se ir noutro vento. Vestiu mais um casaco e sentiu calor.
Não viu o segundo de luz perfeito, mas também não o esperava. Não soube que o perdeu. Simplesmente cortou cabelo, 
trincou a língua 
e voltou a adormecer. 

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