Deixei de usar relógio.

Deixa-me dizer-te o problema que tenho com a vida. Deixa-me falar até que se me acabem as silabas... pode ser que encontre nesse fim o alivio com que sonho.
O problema que tenho com o mundo e que é a verdadeira razão de toda a angustia e insatisfação da minha alma:
                  o tempo é-me pouco. Passa depressa, voa sem eu notar.
Não estou a referir-me somente aos bons momentos, mas a todos! Não estou a referir-me somente às horas, aos dias ou às noites.
Mas sim, as horas sabem-me a pouco. Quero multiplica-las, dobra-las.

Durante uma altura confundi esta insatisfação com nostalgia. Pensava que o que eu ansiava era reviver o tempo, faze-lo esticar, prolongar instantes. Descobri que não. Não quero viver o que já vivi, quero antes viver tudo o que ainda não me aconteceu. A minha ansiedade está, afinal, no facto de eu desejar viver mais do que a minha vida, mais do que o tempo que me é destinado.

Quero outras vidas, outros tempos.
E é por isso que as horas me passam muito depressa. O que fiz a semana passada parece-me num tempo distante, remoto, pois todos os dias tento viver as horas todas. Duas vezes. Sem as repetir. Tento vive-las em linhas paralelas, como duas vidas da mesma pessoa em diferentes épocas.
Preciso disso. A vida é-me pouco.

Não me faças esperar que ela comece se eu quero viver a minha vida mais do que uma vez, sem o repetir, que ser, e ser coisas diferentes, durante mais tempo... e o tempo é sempre pouco para a minha alma.
Sinto-a envelhecida, setenta e sobrevivente, como um cacto no deserto, sozinho e ainda corajoso o suficiente para produzir flores.

Não quero parar. Queria mais vida.
Falta-me o ar e hiperventilo à visão da apatia de algumas pessoas. Como conseguem não sentir o peso do tempo, toma-lo por garantido e de viver devagar, devagarinho, paradas.

Deixei de usar relógio. Já nem sei bem quando. Deixei. Tornava-me paranóica. Roía as unhas, batia o pé ao ritmo do seu ponteiro dos segundos. Vibravam-me as mãos. Sentia a sua batida contra o colchão da minha cama. Não conseguia dormir. Estava a matar-me. Deixei de usar relógio.

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