Talvez até chegar a adormecer



Já sei que sabes falar. Já sei que sabes de filmes e livros e países e de coisas descritas por palavras que nem ouço quando mexes os lábios. Já sei que sabes estar e não estar. Já sei que fumas e bebes cerveja quando sais à noite. Já sei de ti o necessário, o extraordinário é demais, perde o encanto e o mistério que, na verdade, não pertence a ninguém.

Vamos ouvir música de vinil, daquelas melodias dos filmes a preto e branco e contar as falhas no tecto do meu quarto, ou as tábuas manchadas do meu chão. Vamos imaginar quantas pessoas já morreram de amores nestas ruas de calçada portuguesa. De janelas e portas abertas à luz da madrugada vamos fumar um cigarro de mentol para desenjoar do ar pesado do bar e olhar as telhas de vidro por cima da minha banheira. Libertar devaneios sem propósito e destino, parar o tempo. Não fazer planos nem falar do passado.

Vamos falar de coisas banais, do fio de água de chuva perigosamente perto do meu secador de cabelo, dos pombos que espreitam pelas telhas e o pardal que dorme no corredor. Vamos parar por uma eternidade, esquecer o pequeno-almoço e fumar mais um cigarro derretendo as cinzas na garrafa de plástico com agua no chão ao nosso lado.

Vou por a minha cartola vermelha, aquela que diz que Coimbra está a acabar, e o tremelim, e pôr-me contra a luz da janela, que não tem vista para lado nenhum a não ser o céu e a Cabra.
Vou olhar para os meus livros e recordar a lista mental dos que me faltam comprar antes de morrer. (“Why don’t you do right” risca o silencio de fundo) Espalhar pipocas pelo corredor e romper a fechadura da porta do quarto. Partir a secretaria e a prateleira de madeira. 
Talvez incendiar um dos tapetes, aquele pequeno que tenho à entrada, mas sem chama que ofusque a do sol da manhã.

 Talvez até chegar a adormecer.

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